"É tempo de se falar, mostrar e compartilhar o conhecimento das mulheres, de uma maneira mágica, mística. É tempo de as mulheres descobrirem mais sobre seus próprios mistérios - seus processos de mesntruação e nascimento e os ciclos de suas emoções. É tempo de compartilhar isso com os homens. Muitas mulheres dizem: 'O que posso compartilhar? Eu mesma não compreendo.' Bem, é tempo de elas se voltarem para dentro de si mesmas e dizer: 'O que é isto que estou sentindo? Se tivesse de explicar a alguém o que é ser uma mulher, o que diria? O que posso fazer para me tornar mais como deusa num corpo de mulher - mais uma criadora de magia?' A Deusa interior é aquela que sabe - que leva informação de um sistema para outro."

Terra: Chaves Pleiadianas para a Biblioteca Viva - Barbara Marciniak

Mestras Marias

"As árvores velhas quase todas foram preparadas para o exílio das cigarras.
Salustiano, um índio guató, me ensinou isso.
E me ensinou mais: Que as cigarras do exílio são os  únicos seres que sabem de cor 
quando a noite está coberta de abandono.
Acho que a gente deveria dar mais espaço para esse tipo de saber.
O saber que tem força de fonte. "

Manoel de Barros


A sabedoria popular e suas manifestações artísticas são exímios exemplos da memória ancestral que corre em nossas veias. Dotadas de mãos que moldam, criam, tecem e dão vida, as várias Marias que habitam a Terra são Filhas da Deusa, assim como eu e você. Carregam a força da fêmea selvagem em seus ventres, estômagos, corações e gargantas; e assim, seguem superando os obstáculos do dia-a-dia, o trabalho invísivel de casa, o trabalho desigual de fora de casa, a criação dos filhos, as montanhas-russas emocionais, e ainda encontram tempo e energia para trazer à tona a arte que são e dentro de si habita. É o seu grito calado, seu canto muitas vezes silenciado, que durante os pequenos momentos de vôo promovem libertação e conexão com o sagrado que Elas são: anciãs, magas, avuelitas sábias. 

São elas que me fazem voltar no tempo e acessar algo de único que nos une enquanto filhas e filhos do mesmo chão: as danças de roda, os cantos populares, o artesanato, as comidas típicas, a medicina natural, as crenças e simpatias. À elas agradeço por me encher de vida e aconchego com suas belas estórias de um tempo que tenho saudades, mesmo sem tê-lo vivido; de um tempo que quero que volte, mesmo sabendo que a vida é um eterno transformar-se. À elas agradeço por terem a paciência de ensinar com cuidado e sua maneira peculiar os seus conhecimentos tradicionais, permitindo que o que é essencial e da Terra nela continue sendo cultivado e nutrido. 

Aqui, vos contarei sobre a vida das várias Marias que aparecem em meus caminhos e o quanto elas me nutrem com suas vozes e risadas, com suas mãos enrugadas e cheias de dons, com sua arte que tanto quero aprender e passar pra frente, e assim, ser também uma dessas Marias um dia, quem sabe. 

1) Maria de Lourdes e a Arte da Renda de Bilro:

"Olé Mulher Rendeira,
Olé mulhé rendá,
Tu me ensina a fazer renda,
Que eu te ensino a namorar (...)"

Vó Maria, como é mais conhecida pelos moradores da Vila de Ponta Negra (Natal, RN), é uma dessas Marias fortes que levam dentro de si a força de criação do feminino. Nascida e criada ali, aprendeu renda aos 7 anos de idade e desde então nunca parou. "Minha mãe pagou uma mulher pra me ensinar e em 1 mês eu aprendi, já tinha 10 metros de renda feito, que minha mãe vendeu por 1 cruzeiro. Deu pra comprar chinelo, uma roupinha, tecido pra fazer mais roupa e ainda sobrou um dinheirinho que ela guardou'", conta ela, orgulhosa. Com 77 anos, Vó Maria carrega a sabedoria desta arte de tecer à 70 anos bem vividos e cheios de estórias boas de se ouvir. Guarda memórias claras da época em que aquele lugar era diferente, cheio de mato, e das caminhadas que fazia até o rio de Pium para lavar roupa pra fora. Filha de pais agricultores, sempre esteve perto da Natureza a até hoje cria galinhas no seu pequeno quintal. De gênio forte, passa sua sabedoria para as mulheres mais jovens que querem aprender a arte da Renda de Bilro com sua maneira peculiar, à custo de birra e riso. 

As tardes no Núcleo de Produção Artesanal da Vila de Ponta Negra são alegres, e além dela outras tantas Marias estão presentes, cantando e conversando ao som dos bilros batendo; que o diga Dona Zefinha, a mais cantadora de todas. Quando eu soube que antigamente elas faziam cantorias quando estavam rendando, criando lindas orquestras de renda, fui dizer à Vó Maria que eu queria aprender o pacote completo - não só a fazer renda, mas também as músicas populares daquele lugar para cantar com elas. "A gente cantava a muito tempo, quando não tinha televisão pra se distrair, aí ficava todo mundo na calçada com as almofadas no chão, cantando pro tempo passar. Hoje em dia eu nem lembro mais dessas músicas", fala ela, que trocou a cantoria pela conversa de língua afiada. Eu, que prezo pela musicalidade e vejo no bater de bilros um exímio instrumento percussivo, tenho que ficar com os ouvidos bem atentos às poucas que ainda cantam. 

Dos 12 filhos que Vó Maria teve, todos vindo pelas mãos de parteiras curiosas, apenas 2 tiveram o interesse em aprender a arte da Renda de Bilro. Hoje ela dá cursos para as pessoas que estejam interessadas, como eu, em não deixar esta arte tão bela e ancestral morrer, e é nítido perceber o quanto isso a alimenta de vida. Quando fui pedir permissão para falar sobre ela aqui, eis que ouço: "Falar o quê de mim, minha filha? Eu não tenho nada de mais..." Modesta não? Pra mim ela é um poço infinito de sabedoria e eu sou agradecida à Deusa por poder compartilhar tardes lindas com esta e outras Marias!!!

Para @s interessad@s em conhecer e aprender esta arte, visitem o Núcleo de Produção Artesanal da Vila de Ponta Negra; fica logo ali ao lado da igreja da vila, vocês verão as belas rendeiras tecendo com seus bilros percussivos na calçada.  



Escrito em julho de 2011

2) Maria de Soledade e a Arte de 'pegá minino':


Maria da Soledade é moradora do Alto do Monte Hermínio, comunidade situada no município de Nísia Floresta, RN. Conhecida como Dona Duca, foi aos 15 anos que ela iniciou seus passos na arte de 'pegá minino', quando foi trabalhar na maternidade do local. Foi neste ambiente que aprendeu e acessou seu dom, mas fala de maneira clara: "É fácil demais 'pegá minino', não tem o que fazer não!". Se denomina Parteira Curiosa e já perdeu as contas de quantos partos ajudou a fazer. Hoje, com 60 anos, 4 filhos criados e um casamento feliz, fala que está cansada e quer parar: "Já falei que não vou mais 'pegá minino', mas o povo chega lá em casa, eu nego e eles ficam lá, esperando, até eu ir". É a única parteira do local, e agora que a maternidade deixou de funcionar (por questões puramente políticas), não tem como negar ajuda não!

Quando a encontrei e perguntei se ela era parteira, ela disse: "Sou parteira, mas sou auxiliar de enfermagem e auxiliar de dentista também." Ela fala que depois que os médicos chegaram na maternidade, parteira não tem mais vez, não há reconhecimento do trabalho. Ao perguntar sobre as variações dos partos (pélvicos, sentados, etc), ela diz que manda pro hospital na hora. "Esses aí são difícies, minha filha, não quero arriscar não!" Sobre a utilização de ervas no momento do parto, para combater hemorragia por exemplo, ela diz: "Mando pro hospital, se o útero tá mole, não arrisco, depois pode sobrar pra mim!" Conta que quando estava se formando em auxiliar de enfermagem, foram ter uma aula prática durante um parto, e no momento de espera da placenta, o médico interviu, puxando. Ela saiu irritada da sala, com ameaça de não receber a nota adequada, mas justificou: "Eu sou parteira, não sou urubu não! Tem que ter paciência na hora da placenta, ela tem que sair na hora certa, se puxar pode ficar algo lá dentro e complicar depois. Pra quê arriscar? Eu falo pras mulheres 'vamos esperar ela sair, se você sente uma contração, é ela vindo' e pronto, espero o tempo que for".

Com um humor afinado, brincos grandes e uma risada gostosa de se ouvir, Dona Duca me conta de sua vida pessoal, da relação com o marido e da leveza que tem no seu casamento de mais de 30 anos. "Ah, minha filha, eu tenho minha vida, ele tem a dele. Se misturar e ficar no pé num dá certo não, é briga na certa. Eu casei foi pra ser feliz, não foi pra brigar não!".

Me despeço de Dona Duca depois de uma conversa leve e descontraída, mas com a vontade no coração de conhecê-la mais e aprender com a história de uma Maria tão forte e decidida no que quer e faz! 

Escrito em agosto de 2011